TRUQUES-E-TOMATES
(a ouvir John Coltrane Coltrane for Lovers)
Querido Peixe,
Uma vez, há muito tempo atrás, no tempo que éramos crianças e o meu pai brincava connosco (brincou até ao fim, e nós herdámos os genes brincalhões, desses que nos impelem a brincar ao macaquinho-do-chinês aos 35 anos!), eu, a mana e os primos pedimos-lhe para nos ensinar judo.
Se a memória não me prega uma partida, foi numa daquelas alturas em que estavamos os cinco todos-ao-molho-e-fé-em-Deus a rir e a gritar.
E quando fizémos o tal pedido, o meu pai parou e endireitou-se, tornou-se ainda mais gigante (ele era muito alto) e, mexendo no cabelo como só ele fazia, respondeu-nos fria e peremptoriamente: o judo que aprendi na tropa foi para matar e nunca vos hei-de ensinar isso!
Outra vez, há já algum tempo, no tempo em que tinha vinte-e-picos, fui assaltada na paragem do autocarro. Fiquei furibunda e quando cheguei a casa pedi, outra vez, para me ensinar uns truques.
Manteve-se fiel à promessa que fez.
Tive de me contentar com um primeiro, mete-se os dedos nos olhos com força e depois dás com toda a força nos testículos. Sim, ele disse mesmo testículos…
O meu pai nunca nos bateu. Tanto ele como o meu avó major e Deus ensinaram-nos que existem outras formas de exercer influência e de veicular autoridade e disciplina
Mais uma vez, há tão pouco tempo que foi na segunda-feira passada, os colegas de emprego foram brutalmente agredidos por alguém que, reclamando um direito, perdeu a razão, a honra, a dignidade.
Nesse dia à noite, pedi a Deus uma explicação: « Mas estes [homens], iguais a animais irracionais, nascidos naturalmente para serem apanhados e destruídos, nas coisas que em que são ignorantes e falam de modo ultrajante sofrerão a destruição até mesmo no seu próprio [proceder de] destruição, fazendo a si mesmos injustiça em recompensa de fazerem injustiça.» *
Orei, então, a Deus para que iluminasse aquela pessoa tão cheia de truques e de colhões, de raiva e de ódio – porque todos nós, ao recusarmos quebrar o padrão de violência em que vivemos, estamos a tecer a nossa própria destruição.
Peixe-querido, o meu pai lutou na Guerra do Ultramar - nunca o disse, mas há palavras que estão lá dentro nos olhos e, tal como os outros que estavam em zona 100% de risco, deve ter visto e cometido atrocidades, que não se vai pr’á guerra para jogar ao bingo-das-palavras.
S.Star
* 2Pedro2:12-13
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